sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

DELEGADO DE POLÍCIA, AGENTE POLÍTICO

Tão logo noticiada a existência da PEC 19/2011, foi justa e grande sua repercussão entre os Delegados de Polícia, mormente porque nos incluiria formalmente no decantado rol das “carreiras jurídicas”.

A conjuntura da disputa eleitoral pela presidência da ADPESP, insolitamente acirrada e extremada, precipitou uma série de manifestações favoráveis e críticas desfavoráveis, cujo mérito não cabe aqui discutir, até porque não é esse o intuito deste trabalho.

Para que a formal inserção do Delegado de Polícia no indicado rol fosse mais direta e explícita, melhor seria mesmo que a locução “carreira jurídica” viesse grafada, entre vírgulas, no § 3º do art. 140. Parece-nos que já há emenda nesse sentido. Mas, mesmo que essa emenda não vingue, nem por isso o Delegado de Polícia deixará de integrar a gama dessas carreiras.
Historicamente, o texto original da Constituição Federal de 1988, na combinada relação entre seus revogados artigos 241 e 135, já conceituava o Delegado de Policia como tal. Mas o próprio art. 140 e seus §§ da Constituição do Estado já deixam e, com mais ênfase continuarão deixando, após a promulgação da PEC, patente e inarredável, esse enquadramento. Veja-se: a) no caput “... dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito...” (nem todo bacharel em Direito é Delegado de Polícia, mas todo Delegado de Polícia tem que ser bacharel em Direito); b) no § 4º “...concurso público... Ordem dos Advogados do Brasil ...bacharel em direito ... dois anos de atividades jurídicas...”; c) com espeque no C.P.P. e diversas outras leis, o Delegado de Polícia preside e pratica, privativamente, um sem número de atos de polícia judiciária de inequívoca natureza jurídica, tão óbvios que não releva aqui enumerá-los.

Argumenta-se que a expressa, direta e objetiva inclusão do Delegado de Polícia no rol das carreiras jurídicas, redundaria em forçado nivelamento remuneratório com as carreiras afins. Talvez seja um caminho, um aceno. Isso depende, entretanto, de projeto de lei complementar de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, que não nos parece sensível a tanto.

Bem por isso, a leitura que fizemos da PEC 19 foi num outro sentido, ao nosso ver, muito mais importante e alentador. Tem como foco o disposto no § 3º:
“Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.” (grifamos).
Dentro da conceituação genérica dos agentes públicos formulada por Hely Lopes Meirelles ( ), os Delegados de Polícia enquadram-se como agentes administrativos, por “vincularem-se ao Estado por "relações profissionais” sujeitos à hierarquia funcional e ao regime estatutário, comumente chamados servidores públicos”. O Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello, que prefere classificá-los como “servidores estatais”, acrescenta-lhes o “vínculo de dependência”( ). Conquanto defendamos que, na qualidade de autoridade policial e presidente do inquérito policial, o Delegado de Polícia não está jungido a controle funcional, essa defesa é – reconheçamos – relativa e tormentosa, dado arguir-se em seu desfavor o princípio da hierarquia e disciplina consagrado em sua lei orgânica, o controle de mérito e de legalidade de seus atos pelo superior hierárquico, o instituto da avocação e estar ainda sujeito ao controle externo (correição judicial e Ministério Público), afora não ocasionais imposições ou injunções de caráter político-administrativo.
A indagação que nos ocorreu, à vista do dispositivo em destaque, foi a seguinte: estará o Delegado de Polícia na iminência de ser transformado em agente político? Ousamos, com muita alegria e emoção, afirmar que sim!
Se “sim”, por quê? E o que disso resultaria?
O que caracteriza o agente político? O sempre consagrado mestre Hely ( ) nos ensina:

“Agentes políticos são os componentes do Governo em seus primeiros escalões, para o exercício de atribuições constitucionais. Atuam com ampla liberdade funcional e possuem prerrogativas próprias, não estando sujeitos, em regra, a controle hierárquico, submetendo-se tão-somente aos limites constitucionais e legais estabelecidos. Exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, atuando com independência nos assuntos de sua competência. São remunerados por subsídio. São exemplos de agentes políticos os chefes do Poder Executivo e seus auxiliares diretos, os parlamentares, os magistrados, os membros do Ministério Público, os membros dos tribunais de contas e os representantes diplomáticos.” (grifamos)
Respeitáveis doutrinadores, entre os quais despontam Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, discordam do mestre Hely Lopes Meirelles e também de Toshio Mukai ( ) e de José Afonso da Silva ( ) – e excluem dessa categoria os membros da Magistratura e do Ministério Público, dado não exercerem mandato político. Partindo do pressuposto de que uma das características básicas dessa espécie de agentes é a não submissão à hierarquia funcional (prerrogativa da vontade própria) e não apenas integrar o esquema fundamental do poder, ousamos permanecer ao lado do velho mestre, de Mukai e José Afonso. Ademais e por isso mesmo, magistrados e promotores de justiça gozam das prerrogativas constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio, além de foro privativo por prerrogativa de função.
Em interessante trabalho intitulado “Agentes Públicos, Agentes Políticos” ( ), o Ministro José de Castro Meira, do E. Superior Tribunal de Justiça, confrontando as conceituações dos citados doutrinadores e excepcionando a controversa questão do mandato político, constata a existência de pontos comuns entre eles, quais sejam de:
a) serem formadores da vontade superior do Estado;

b) serem providos de prerrogativas funcionais necessárias ao pleno exercício de suas complexas funções; e

c) que a relação jurídica mantida com o Estado deriva da constituição e de leis especiais.

O ilustre autor, dando aval à condição de agente político ao Magistrado, conclui:

“A meu ver, a essência do conceito de Agente Político acha-se na ampla margem de liberdade para a tomada de decisões, numa palavra: na discricionariedade. Os titulares dos três Poderes exercem suas atribuições sem estarem subordinados a ninguém. Essa independência emana diretamente do Texto Constitucional e não pode ser restringida por nenhuma norma infraconstitucional”. (grifamos)
Em nossa síntese pessoal, três são os requisitos para a caracterização do agente político: a) assento constitucional; b) exercício de função básica do Estado e c) independência funcional.
Nessa linha de raciocínio, além dos agentes políticos já relacionados pelo mestre Hely, dois novos tipos como tal se enquadram: os Defensores Públicos e, proximamente, os Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.
Com relação aos Magistrados, onde encontramos o preenchimento das condições necessárias àquela definição? No Capítulo III (Do Poder Judiciário); no art. 1º (Estado Democrático de Direito), no art. 2º (independência funcional) e no art. 5º, XXXV (princípio da inafastabilidade), todos da Constituição Federal, entre outros.
Com relação aos Promotores de Justiça, invocamos o artigo 129 da Carta da República:
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.” (grifamos)

Quanto aos Defensores Públicos trazemos à luz o art. 134 da nossa Carta:
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.)
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.Na legislação complementar:
Art. 3º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. (Lei Complementar Federal nº 132, com igual dispositivo no art. 4º da Lei Complementar Estadual nº 988, de 2006). (grifamos).


E quanto aos Delegados de Polícia?
Quanto a nós, a vontade superior do Estado e sua função básica estão no caput do art. 5º (direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade) e no caput do art. 144 (a segurança pública é dever do Estado), todos da CF. E também no art. 140, § 2º, da PEC 19, quando consagra “o exercício de atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica”. As prerrogativas funcionais, além das previstas nas leis processuais penais, revestem-se agora de independência funcional, enquanto garantia constitucional. A relação jurídica mantida com o Estado deriva, assim, da Constituição e de leis especiais. O assento constitucional situa-se no art. 144, IV da CF e no art. 140, da Carta Estadual, agora mais incisivo no que tange à “independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária”.

De notar-se que, apesar de ter deferido independência funcional ao Delegado de Polícia, a PEC 19 não cuidou de atribuir à Polícia Civil autonomia administrativa e financeira. Ao nosso sentir, o legislador constitucional na sistemática conceitual utilizada, quando se referiu e deferiu autonomia (administrativa, funcional e/ou financeira), fê-lo em relação ao órgão, no sentido de autogestão. Quando se referiu e deferiu independência funcional, fê-lo em relação ao agente político. “Autonomia, conforme ensinou João Mendes Júnior (apud Alexandre de Moraes, 2005, p. 547), "significa direção própria daquilo que é próprio". Onde no plano financeiro, existe a prerrogativa desse órgão público de elaborar sua proposta orçamentária, dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias (CF, art. 127, § 3°).”
Embora no limiar de tornar-se agente político, titular de independência funcional, não estará, por óbvio, o Delegado de Polícia livre da submissão aos princípios constitucionais da legalidade, da probidade e da moralidade, entre outros. Responderá, quando cabalmente configurados, por eventuais abusos seja no campo civil, no penal e no administrativo, dado o Poder não ser prerrogativa absoluta de nenhum agente público.
O que resultará dessa nova condição funcional do Delegado de Polícia?
a) De prático e de imediato, a salvaguarda de seu poder discricionário de aferir e adotar, fundamentadamente, segundo sua convicção subjetiva, a providência de polícia judiciária que entender cabível a cada caso.

b) Desde logo, também, de não se submeter a qualquer ordem ou orientação do órgão que integra, contrária à sua livre convicção.
c) De poder representar contra quem atente contra sua independência funcional.

d) De estar ombreado, funcional e constitucionalmente, aos demais agentes políticos envolvidos nas atividades jurídicas do Estado.

e) De buscar o reconhecimento do direito a foro especial, por prerrogativa de função.

f) De romper definitivamente qualquer resquício de vínculo ou assemelhação com a Polícia Militar.
g) De exigir do Governador o complemento material decorrente de sua nova situação funcional, elevando sua remuneração a níveis equivalentes aos dos demais agentes políticos ligados à área das atividades jurídicas.

h) Pelo menos, honorificamente, enquanto aguardam a concretização de tais reconhecimentos, poderão os Delegados de Polícia ufanar-se, embora de bolsos parcos, de seu novo status.
Este conciso trabalho, nem de longe esgota a questão. Preferimos divulgá-lo ao término da votação para renovação de nossa Diretoria associativa e antes da proclamação do resultado, para que assunto de tão grande e profundo interesse classista não se preste a mais uma polêmica eleitoral. Nossa intenção foi de levantar o tema e de colocá-lo a debate perante tantos brilhantes colegas, em busca de novos e preciosos argumentos, favoráveis ou não, mas sempre no firme intuito de valorizar e enaltecer o Delegado de Polícia e sua nobre função, para que, de futuro, nossos dirigentes eleitos possam dispor de algum novo material que lhes sirva de sustentação, de norte e de estímulo no desempenho do mandato.

São Paulo, dezembro de 2011.


ABRAHÃO JOSÉ KFOURI FILHO,
Delegado de Polícia aposentado e
ex-Presidente da ADPESP.

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